Estamos no meio da maior transferência de riqueza da história, diz executiva do Citi
Segundo a chefe global do ‘private’ do banco americani, novas gerações herdarão US$ 70 tri
O mercado de gestão de fortunas passa por uma transformação global que ocorre uma vez em gerações, avalia a chefe global de “private bank” do Citi, Ida Liu, em entrevista ao Valor. Segundo a executiva, “estamos hoje no meio da maior transferência de riqueza da história”.
A líder da área de gestão de fortunas do banco global afirma que há estimativa de uma transferência de riquezas da ordem de US$ 70 trilhões durante a próxima década para a geração “Y”, também conhecida como os “millennials”, dos nascidos a partir da segunda metade dos anos 1980 até o início dos anos 2000. Liu explica que esse processo muda “fundamentalmente” o mercado de private bank porque “as preferências das próximas gerações são muito diferentes de hoje”.
A chefe da área que atende às famílias mais ricas do Citi acrescenta ainda que “durante a próxima década, as mulheres, que controlam hoje um terço da riqueza global, vão passar a representar quase a metade”. Essas duas tendências, ressalta Liu, significam que o mundo da gestão de patrimônio terá de lidar com investidores que se preocupam em aplicar seus recursos com propósito, ou seja, em fazer a diferença. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: Quais as principais preocupações de clientes brasileiros?
Ida Liu: Nossos clientes aqui têm perguntas semelhantes às dos outros ao redor do mundo. São, basicamente, em três áreas. A primeira pergunta que sempre me fazem é o que vai acontecer com as eleições nos EUA. Posso dizer que vai trazer mudanças, mas assim como outras 80 eleições no mundo. A segunda recai sobre as considerações geopolíticas. Esse tema é prioritário para investidores, que estão pensando em como navegar pelas preocupações em relação às guerras na Ucrânia, Israel e Gaza e, claro, nos desafios em curso entre os EUA e China. E o terceiro tema sobre o qual todos estão me perguntando é o que vai acontecer com a inteligência artificial (IA)? E como a IA vai mudar o panorama das empresas em todo o mundo e afetará os diferentes setores em que nossos clientes atuam? E também, como investir em IA, que é uma das maiores e mais significativas iniciativas de aceleração de crescimento na próxima década? Então, esses seriam, os três maiores temas sobre os quais os clientes [brasileiros] tem perguntado.
A gestão de fortunas vai mudar: as preferências das próximas gerações são muito diferentes do que vemos hoje”
Valor: Como os cenários afetam as recomendações de investimento?
Liu: Em termos de alocação, no geral, estamos focando em três temas. O primeiro é que as taxas de juros [nos EUA] vão começar a cair. Acreditamos que as taxas começarão a cair a partir da metade deste ano. Provavelmente teremos alguns cortes no segundo semestre. E temos de ter certeza de que, neste momento, estamos estendendo o prazo da carteira de renda fixa de nossos clientes para que eles possam manter os rendimentos mais elevados por mais tempo. Então isso é uma coisa que temos rotacionado nas carteiras. A segunda é sobre ações. Todo mundo diz: Uau! Os mercados subiram mais de 20% no ano passado. Mas quando você olha com mais distanciamento, percebe que na verdade foi impulsionado por sete grandes nomes de tecnologia, mas ainda há 493 das ações do S&P 500 que têm valor significativo, especialmente no espaço de pequena e média capitalização [de mercado]. O ritmo acelerado de crescimento da IA é absolutamente surpreendente. Vemos isso como um jogo de longo prazo muito interessante e único. E a frente da transição dos combustíveis fósseis para a energia limpa só vai continuar [a se desenvolver] por meio de segmentos como energia solar, hidrogênio, fusão nuclear, armazenamento por baterias, tecnologia de energia limpa e outras áreas.
Valor: O Citi tem olhado para ativos ilíquidos?
Liu: Pensamos que é muito importante que os nossos clientes continuem a investir em ativos alternativos. Portanto, essa seria a terceira grande área de mudança de foco. A maioria dos nossos clientes já investe em private equity, fundos de hedge e investimentos diretos. Mas ao longo destes últimos anos, transferimos a alocação para quase 30% das nossas carteiras de clientes. E faz muito sentido, dado o ‘alfa’ [retorno acima do mercado] que os gestores alternativos podem alcançar. Um exemplo é o crédito privado. Algumas estratégias centradas no capital e crédito privados têm sido capazes de aproveitar as assimetrias do mercado e alcançar retornos muito impressionantes.
Valor: O mercado de gestão de fortunas está em transformação?
Liu: Estamos hoje no meio da maior transferência de riqueza da história. Espera-se que US$ 70 trilhões sejam transferidos durante a próxima década para a próxima geração, a Y e os ‘millennials’. Já está acontecendo. É o maior volume da história recente. E esta mudança é muito importante na indústria de gestão de fortunas. Isso porque as preferências das próximas gerações são muito diferentes do que vemos hoje. Associado a isso temos o fato de as mulheres controlarem um terço da riqueza global, sendo que esse número irá aumentar durante a próxima década para quase metade. Então, quando você tem duas dinâmicas como essas, em que o dinheiro está passando de mãos para a próxima geração, e também tem mulheres controlando mais riqueza em todo o mundo, isso significará algumas mudanças. Em primeiro lugar, as novas gerações se preocupam profundamente em investir com propósito, em investir com impacto, em fazer a diferença na forma como aplicam seu dinheiro. E a forma como a próxima geração de mulheres está investindo será significativo para o setor de gestão de patrimônio daqui para frente. Além disso, a primeira coisa que os clientes mais jovens me dizem é que o serviço de gestão de fortunas tem de ser fácil, super fácil. Portanto, a experiência digital será absolutamente crítica. Em segundo, estão os relacionamentos. Nossa rede [global], por exemplo, reúne clientes com perfis semelhantes. Temos capacidade de juntá-los para promover relacionamentos. Porque, às vezes, ser a próxima geração de uma família bilionária pode ser solitário. Criamos programas em todo o mundo para a próxima geração. Eles naturalmente formam uma rede onde têm amizades com pessoas de ideias e experiências semelhantes com quem podem compartilhar.
Nos próximos três a cinco anos, a IA pode trazer um aumento significativo no PIB tanto para China quanto aos EUA”
Valor: As transformações tecnológicas, especialmente a IA, são tendências seculares?
Liu: A IA vai transformar completamente toda a indústria como a conhecemos. A IA hoje cresce tão rapidamente que a regulamentação está tentando recuperar o atraso. Portanto, acho que é muito importante que todos nós, os bancos e outras empresas globais, pensemos nas barreiras para usar a IA de forma ética e responsável, e nos certifiquemos de que somos protetores dos dados dos nossos clientes, porque afinal somos fiduciários. Neste momento, estamos usando a IA apenas para alguns processos e tarefas mais cotidianas, para liberar parte da produtividade. Até o momento em que sentirmos que temos confiança de que podemos implantar IA de uma forma muito responsável e segura, acho que usaremos de modo mais cotidiano. De qualquer modo, a IA será transformadora, pode atingir 60% dos empregos hoje e deslocar quase 78% dos empregos em todo o mundo logo mais. Mas uma coisa é absolutamente certa: irá desbloquear e estimular a produtividade das equipes e colaboradores em todo o mundo. Nos próximos três a cinco anos, isso pode significar um aumento significativo no PIB tanto para China como EUA.
Valor: E quanto às criptomoedas? Essa classe tem mais apelo junto à nova geração?
Liu: Os ativos criptográficos são superopacos. Não há realmente nenhuma governança, não há cláusulas de proteção contra falência, não há correlação com os mercados. Portanto, para mim, como fiduciário, como gestor de investimento dos meus clientes, não me sinto confortável em adicionar essa alocação específica às carteiras. Nessa classe existem estruturas de governança muito limitadas.
Valor: Falando em geopolítica, quais os principais riscos?
Liu: As tensões geopolíticas poderiam ser um novo normal por muito tempo. Nos últimos anos, tornou-se uma prioridade e um risco cada vez mais importante a ser considerado pelos clientes. A Rússia, a Ucrânia, a agitação que está acontecendo em Israel, no Médio Oriente, e depois juntamos isso à bifurcação em curso entre os EUA e a China, e essas relações não estão melhorando. Estão divergindo ainda mais, à medida que ambos se tornam mais nacionalistas e se voltam mais para dentro, se concentrando no desenvolvimento de tecnologias e na tentativa de serem líderes em diferentes áreas. Quando temos duas superpotências nesse tipo de conflito, cria-se uma dinâmica muito interessante para os investidores globalmente. Devido a mudanças nas cadeias de abastecimento em todo o mundo, muitos países estão se beneficiando dessa divisão. Na China, trata-se de um movimento para o Sudeste Asiático. Estamos vendo um fluxo enorme [de recursos] para Cingapura, Filipinas, Malásia, Vietnam e Tailândia. Além disso, no Ocidente, nos EUA e na América do Norte, vemos o México se beneficiando do ‘nearshoring’ [movimento de trazer para mais perto dos mercados as cadeias de produção].
Valor: Como navegar nesse ambiente de endividamento crescente nos Estados Unidos?
Liu: Essa pode ser uma possibilidade a longo prazo [que o nível de endividamento afete preços de ativos]. É por isso que temos carteiras diversificadas, para que possamos ter certeza de que você está bem coberto, tanto em termos de classe de ativos quanto geograficamente. A maioria dos nossos clientes é de natureza global. Portanto, muito raramente têm todos os seus ativos num único país ou todos os seus ativos num único tipo de classe. Como posso me proteger dos vários cenários que podem ocorrer? Quer se trate de um limite máximo de dívida [nos EUA], de um risco geopolítico ou de uma exposição cambial, sempre buscamos formas de ajudar os nossos clientes, sobre a melhor forma de construir suas carteiras para fornecer um nível de mitigação de risco. Não estamos apenas tentando gerar retornos e alfa para nossos clientes, mas, como fiduciários, também queremos reduzir riscos para as carteiras de nossos clientes. A diversificação é desse modo, uma base essencial para construir um bom portfólio.
Fonte: Valor Econômico