FT: Países com impostos baixos cortejam os ricos do mundo

Países como o Reino Unido estão reforçando as regras fiscais para estrangeiros ricos, enquanto outros competem para lhes oferecer uma nova casa

Os multimilionários da Europa estão inquietos. No Reino Unido, a decisão do governo trabalhista de acabar com um regime fiscal para não domiciliados que beneficiava os estrangeiros ricos levou a uma enxurrada de realocações. 

Na França, a falta de transparência política depois das eleições parlamentares antecipadas de julho, que deixou uma aliança de partidos de esquerda como o maior bloco, vem levando muitos ricos a fazer planos contingenciais para sair do país caso um imposto sobre a riqueza seja restabelecido. 

Desde as mudanças nos impostos sobre a riqueza e sobre ganhos de capital na Noruega em 2022, muitos milionários e bilionários vêm se mudando para a Suíça. 

Nunca foi tão fácil para os super-ricos se mudarem. Como resultado, a competição para atrair pessoas ricas usando incentivos fiscais, além de concessão de cidadania e outros caminhos para a residência, também se intensificou. Novas jurisdições como Dubai e Cingapura estão se intrometendo em territórios tradicionais como Reino Unido, Suíça e Mônaco. 

O sistema “non-dom” do Reino Unido era o regime fiscal privilegiado mais antigo do mundo, com raízes que remontam há dois séculos, à era colonial. Ele permitia que estrangeiros que residem no Reino Unido mas se consideram domiciliados no exterior não tivessem que pagar impostos no país britânico sobre suas rendas e ganhos de capital no exterior por até 15 anos. 

Mas em março o governo conservador anunciou que iria substituir o regime por um novo sistema de quatro anos. O governo trabalhista, que o sucedeu, indicou que removerá a capacidade dos não-domiciliados (“non-dom”)de proteger os ativos estrangeiros mantidos em fundos fiduciários do imposto sobre heranças. Também prometeu acabar com uma lucrativa brecha fiscal (“carried interest”) amplamente usada por fundos de private equity, muitos dos quais também não-domiciliados. 

O segundo regime de privilégios fiscais mais antigo é o da Suíça, que existe há mais de um século. Trata-se de um sistema de tributação de valor fixo, ou “forfait”, em que indivíduos ricos firmam acordos personalizados com as autoridades locais em relação às taxas de impostos que pagam. Dados mais recentes mostram que mais de 4.500 pessoas pagam impostos dessa forma na Suíça. 

Mas nos últimos 20 anos, vários novos concorrentes introduziram sistemas de privilégios fiscais supostamente para atrair estrangeiros ricos, como Chipre, Grécia, Itália, Malta, Portugal e Espanha. 

Cidades-Estado como Dubai e Cingapura também competem para atrair expatriados ricos com ofertas de impostos de renda ou sobre capital baixos ou, no caso de Dubai, imposto nenhum para indivíduos. Isso reforçou uma tendência de mudança de domicílio de milionários e bilionários, aponta uma pesquisa da Henley & Partners, empresa global de consultoria em migração. Os impostos costumam ser um fator-chave na decisão desses emigrantes ricos. 

A empresa monitora o movimento entre países e cidades de mais de 150 mil indivíduos de patrimônio elevado e prevê que um recorde de 128 mil milionários irão se mudar este ano, superando o recorde de 120 mil de 2023. 

Dominic Volek, da Henley & Partners, descreveu a grande migração de milionários como um sinal de que mudanças profundas estão acontecendo no cenário global da riqueza, que poderão ter efeitos significativos sobre os países que eles deixam ou adotam. 

Os governos valorizam a riqueza e o consumo que os ricos trazem, mas também existem riscos de uma reação das populações locais se o fluxo de estrangeiros ricos provocar uma alta nos preços imobiliários locais, pressionar a infraestrutura pública ou resultar em uma gentrificação excessiva. 

Só no último ano, três dos mais populares regimes de privilégios fiscais da Europa endureceram suas regras em resposta a pressões políticas. Além da reforma do sistema do Reino Unido, Portugal fechou em 2023 seu programa para não residentes e lançou um novo sistema este ano que não está mais disponível para aqueles cuja renda vem de pensões. Governos escandinavos reclamaram que o velho sistema atraiu aposentados que pararam de pagar impostos em seus países de origem. 

Na semana passada, a Itália surpreendeu ao dobrar um imposto anual sobre a renda estrangeira de novos moradores para 200 mil euros. 

Um consultor tributário internacional admite reservadamente que esses esquemas de privilégios fiscais sempre arriscam atrair a ira dos habitantes locais. “Eles podem ser difíceis de justificar politicamente porque, no final das contas, você está fazendo um favor a pessoas ricas”, diz o consultor. 

A riqueza e os gastos que os super-ricos levam para um país é a principal motivação para se estender o tapete vermelho fiscal. Mas alguns países também exigem que os estrangeiros ricos paguem algum imposto. Muitas vezes, os valores pagos são consideráveis. Por exemplo, os números mais recentes mostram que 8,9 bilhões de libras foram pagos por 74 mil não domiciliados no Reino Unido. 

“O principal benefício é que essas pessoas vão consumir mais que o cidadão médio”, diz Sean Bray, diretor de Política Europeia da Tax Foundation Europe. “Portanto, os governos estão dispostos a proporcionar algum alívio no lado do IR, para ganhar mais no lado do imposto sobre consumo.” 

Mas gestores de fortunas relatam que a competição para atrair migrantes ricos que buscam evitar impostos mais altos em outros lugares está mais acirrada no momento, conduzida em parte por repressões em jurisdições rivais. 

Consultores em países como Itália, Suíça e Emirados Árabes Unidos afirmam que têm recebido cada vez mais consultas de não domiciliados no Reino Unido que querem se mudar. “Há muitos territórios que veem os non-doms do Reino Unido como disponíveis para serem conquistados”, diz Tim Stovold, da Moore Kingston Smith, uma consultoria no Reino Unido. 

Anthony Richardson, advogado da Church Cout Chambers de Londres que lida com questões fiscais internacionais, diz que muitos indivíduos ricos estão preocupados com a direção geral dos ventos nos países ocidentais. 

“Como resultado da enorme quantidade de dívida que os governos assumiram após a pandemia, começamos a ver um êxodo de milionários e bilionários do Reino Unido e de outros lugares para locais como os Emirados Árabes Unidos”, diz ele. “O que eles veem como um risco é que suas riquezas sejam vistas como dinheiro prontamente disponível”, acrescenta ele. “Não diria que os esforços para atrair essas pessoas se intensificaram, eu diria que o êxodo se intensificou.” 

Paul Donovan, economista-chefe da UBS Global Wealth Management, acrescenta que a migração de milionários também está sendo motivada por uma “perturbação estrutural na riqueza global”, incluindo o impacto das sanções contra muitos russos ricos e o desejo de muitos donos de empresas de viverem mais perto de onde elas estão localizadas. 

Em julho, o UBS divulgou um relatório prevendo que Reino Unido e Holanda serão os países que mais perderão milionários até 2028 — quedas de 17% e 4%, respectivamente. Os dois países contrariam uma tendência mundial que mostra que o número de milionários deverá aumentar em 52 dos 56 países que o banco monitora. 

Donovan diz que isso ocorre em parte porque havia um número desproporcionalmente alto de milionários no Reino Unido e na Holanda, em relação aos tamanhos de suas economias. Como resultado, qualquer perturbação estrutural que afetasse os milionários nômades poderia ter um impacto desigual sobre os dois países. 

Outros apontam para mudanças no cenário financeiro internacional nos últimos 10 anos, que tiveram um impacto sobre a capacidade dos super-ricos de proteger suas fortunas. 

“Antes, as pessoas ficavam em seus próprios países e escondiam seu dinheiro em paraísos fiscais”, diz Pascal Saint-Amans, ex-chefe fiscal da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). “Mas o fim do sigilo bancário e o aumento na troca de informações… significam que se você não quiser ser taxado em um país, você precisa sair dele.” 

As decisões de realocação não envolvem apenas as taxas dos impostos. Emma Chamberlain, consultora de questões fiscais internacionais da Pump Court Tax Chambers do Reino Unido, diz que fatores como segurança, educação, infraestrutura de negócios, estabilidade, cultura e comunidade também são importantes — e que as pessoas geralmente se mudam para lugares onde colegas, amigos ou familiares estão baseados. 

Philippe Pulfer, do escritório suíço Walder Wyss, que ajuda pessoas ricas a decidirem onde viver, observa que para muitas dessas pessoas, a estabilidade econômica e política é muito importante. 

“A tendência que vemos é que as famílias não são mais estáticas e podem mudar o local de residência mais facilmente do que antes. Mas mesmo quando esse é o caso, elas gostam de estabilidade”, diz Pulfer. “Elas querem mudar para um país que não esteja sujeito a mudanças políticas rápidas.” 

A decisão do Reino Unido de sair da União Europeia foi uma dessas mudanças. Dados da Henley apontam que o país teve uma perda líquida de 16,5 mil milionários entre 2017 e 2023. A China também sofre um êxodo de cidadãos super-ricos, depois de suas políticas draconianas em relação à pandemia, e em razão da agenda de “prosperidade comum” de redistribuição de riqueza do presidente Xi Jinping. 

Bray concorda que a estabilidade econômica e a fiscal são altamente valorizadas pelos ricos que querem se mudar. Mas ele acrescenta que embora os impostos não sejam o único fator em suas decisões, certamente são maiores do que seriam para trabalhadores de baixa e média renda. “Os ricos são altamente móveis. Eles tendem a responder a incentivos e têm os meios para tirar vantagens deles.” 

Chamberlain acrescenta que os europeus que trabalham com private equity até recentemente gostavam do Reino Unido, mas agora estão gravitando em torno da Itália, especialmente Milão, enquanto Dubai, e mais recentemente Cingapura, são lugares frequentemente de mais interesse para os originários da Ásia. 

Ela diz que a Suíça “parece ser mais popular entre os alemães, escandinavos e francófanos”, embora ressalte que essas são generalizações. Muita depende de fatores como filhos ainda em idade escolar, ou se os pais são aposentados. 

Peter Ferrigno, diretor de serviços tributários da Henley & Partners, diz que Chipre e Malta atraem pessoas porque não tributam dividendos estrangeiros. 

Ele acrescenta que, para os europeus que “precisam estar mais perto de seus mercados nacionais”, Grécia e Itália continuam populares devido às suas taxas fixas máximas de imposto. Na Grécia, ela é de 100 mil euros por ano — o que, segundo ele, é muito atraente para quem ganha mais de 250 mil euros. 

Marco Cerrato, sócio da Maisto e Associati, um grupo de advocacia com escritórios na Itália e Reino Unido, diz que até agora este ano os três principais destinos para expatriados ricos interessados em se realocar são Itália, Suíça e Mônaco. 

Mas outros países antes em alta já foram deixados de lado. “Quando Portugal encerrou seu esquema para novos residentes, todas as atenções se voltaram para a Itália. Agora, [os italianos] decidiram subir o imposto, o que, sem dúvida, limitará o número de pessoas que vai aderir ao esquema”, diz Stovold, da Moore Kingston Smith. 

Gestores de grandes patrimônios dizem que mudanças tão bruscas servem de exemplo sobre os riscos de se mudar de país só com base na motivação dos incentivos tributários — os benefícios podem mudar se os ventos políticos virarem de direção. 

Pulfer acrescenta que na Suíça há um certo sentimento de “schadenfreude”, de prazer no sofrimento dos demais, sobre as mudanças no esquema que beneficiava pessoas que podem morar no Reino Unido sem registro de domicílio. “Por muito tempo, os dois países óbvios para indivíduos ricos, as duas jurisdições de primeira linha, foram o Reino Unido e a Suíça”, ele diz. “Não acho que seja vantajoso para a Suíça que este [sistema de não domiciliados] esteja acabando no Reino Unido.” 

A premiê da Itália, Giorgia Meloni, diz que a decisão de dobrar o valor no esquema de imposto fixo foi tomada porque o governo quer “mitigar uma medida que parecia extremamente generosa”. 

O governo dela também sustenta que o país deseja evitar uma competição nociva com outros países que tentam atrair pessoas físicas e jurídicas por meio de isenções fiscais. Referindo-se aos altos níveis de dívida soberana da Itália, o ministro das Finanças, Giancarlo Giorgetti, diz que “se essa competição começar, países como a Itália — que têm um espaço fiscal muito limitado — estão inevitavelmente destinados a perder”. 

Também houve inquietação em Milão, a cidade empresarial no norte do país que se tornou um imã para os super-ricos, em parte graças ao esquema de imposto fixo, que foi apelidado de “svuota Londra”, que significa “Londres vazia”. Mais de 2,7 mil indivíduos super-ricos se mudaram para a Itália desde a entrada em vigor do esquema em 2017, mas alguns milaneses reclamam do aumento vertiginoso dos preços dos imóveis. 

Na Suíça, entre 2009 e 2012, algumas regiões votaram pela abolição do uso do sistema “forfait”, inclusive Zurique. Em 2014, os suíços votaram em um referendo pela manutenção das regras de tributação com um valor fixo, mas há debates em curso sobre elevar ou não os impostos para os mais ricos, em especial as taxas sobre heranças. 

Em termos internacionais, há discussões no G20 (grupo que reúne as principais economias mundiais) concentradas em definir se um imposto mínimo mundial sobre bilionários deveria ser criado, similar à iniciativa da OCDE para estabelecer uma taxa mínima de imposto sobre pessoas jurídicas. 

Embora o plano ainda não tenha obtido apoio suficiente para sua adoção, alguns o veem como sinal de que haverá mais atividades nesse sentido. 

“Acho que haverá pessoas defendendo regras tributárias internacionais para tentar lidar com essa questão”, prevê Grant Wardell-Johnson, líder global de política tributária da KPMG International. 

Volek diz que a demanda dos super-ricos por refúgios estáveis, agradáveis e lenientes quanto às finanças pessoais continua tão alta como sempre e que muitas jurisdições estão dispostas a atender a essa demanda. “Os países que se adaptarem e inovarem serão os que se darão bem.” 

Ainda assim, Saint-Amans, o ex-integrante da OCDE, diz que, embora a competição tributária entre países ainda esteja “acirrada”, provavelmente está perto de seu teto. “A mudança no Reino Unido provavelmente é um sinal de que algo está acontecendo. Grandes países que se beneficiaram maciçamente desses esquemas estão sentindo um frio na barriga […] e isso é um reflexo do populismo que estão enfrentando.” (Tradução de Mario Zamarian e Sabino Ahumada)

Fonte: Valor Economico